domingo, 7 de março de 2010

Extraordinario discurso de Marcos Rolim em referência ao "8 de Março".

ELOGIO ÀS BRUXAS

Sr. Presidente,

Sras. Deputadas. Srs.Deputados.

Transcorre amanhã o Dia Internacional da Mulher, homenagem que se universalizou em lembrança ao martírio das operárias americanas queimadas quando da ocupação de uma fábrica em 1857. A data em si evoca a dor, mas, também, a resistência e o heroísmo. Veremos, Sr. Presidente, como uma história das mulheres só pode ser compreendida quando situada nesta dupla dimensão, épica e trágica a um só tempo: marcada pelo sofrimento, é verdade, mas construída com a determinação inflexível de quem se sabe sujeito e age como tal.

Antes, porém, seria justo e necessário repor as razões que conduzem um homem à tribuna para se referir à data tão importante. Não me reporto aqui a nossa condição feminista, mas à necessidade de, sobre séculos de discurso masculino e opressor, firmar uma outra tradição que seja, igualmente, uma nova fala; uma fala de homens e mulheres livres. Que esta tentativa tenha, então, em sua insignificância, pelo menos o sentido simbólico de uma impossível autocrítica do nosso gênero que, historicamente, tem se caracterizado pela violência, pela intolerância e pela inclinação, sempre renovada, de submeter as mulheres.

Começamos pela recusa de todas as iniciativas de enquadramento feminino nos marcos deste ou daquele padrão politico, cultural, estético ou moral. O homem dominador, antes de tudo, não permite às mulheres a honra de individualizá-las. É preciso, por esta ótica, tratá-las como um coletivo amorfo a quem se atribui qualidades intrínsecas e defeitos perenes. Falamos, então, com um suspeito distanciamento, da "mulher" que existiria em todas as mulheres e somos capazes de nos precaver frente a sua indiscutível "frivolidade" ou mesmo nos armar até os dentes para a ameaça que paira sobre nossa "honra" a qual - admite-se ainda em nossos respeitáveis tribunais - pode ser lavada com sangue. E como somos cuidadosos com as mulheres... Com as que dividimos nosso cotidiano, cuidamos

para que não se percam no horizonte vertiginoso do trabalho e da esfera pública; as preferimos, via de regra, em casa, no universo emocionante das tarefas de Penélope pois, pensamos, cabe a Ulisses o destino de viajar pelo mundo. E, quantas vezes, de forma piegas, soubemos "valorizar" este mundo da repetição que se constrói da pia ao tanque, da cama à tábua de passar?

Sim somos sensíveis e cuidadosos. Zelamos pelo destino de todas as mulheres louvando, por exemplo, os atributos naturais que 1hes permitem a maternidade. Nossa criatividade não tem limites e, ironicamente, inventamos ditos nada populares: "Ser mãe é padecer no paraíso" repetimos, como quem consola e, ao mesmo tempo, condena. E com p nossas filhas, por acaso nosso cuidado é menor? Não as pretendemos eternamente crianças longe do sexo e perto da etiqueta? Agrada-nos imaginá-las Joana D’Arc, Maria Quitéria e Anita Garibaldi ou as preferimos domadas prisioneiras passando de pai a marido com nosso real consentimento?

Sim, nossos cuidados são vários e incansáveis. Frente àquelas que desejamos, cuidamos em possuí-las já com o olhar e, súbito, somos selvagens esfomeados antecipando estratégias de abate. E se nossas presas resistem, imaginamos que esta é a forma específica e natural da inevitável "entrega"; por via das dúvidas, carregamos cá conosco nossas bordunas como derradeiro argumento. E, por toda esta conduta, se sorrimos ao falar das mulheres, não podemos esconder os cadáveres que trazemos entre os dentes.

Sim, Sr. Presidente, como assinala Afonso Romano de Sant’Anna: "Estão matando nossas fìlhas e mulheres e acompanhamos pasmos o enterro das vizinhas; sem contar as que abortam nos subúrbios e se enterram em ensangüentados panos menstruais... Estamos matando nossas filhas, mães e irmãs; como sempre derrubamos negras nos celeiros e índias na floresta; em Nova York estupramos 45 por hora num sufoco de abatidas gazelas; nos subúrbios de São Paulo e nas favelas do Rio já não há contas, mas se pode ouvir no amanhecer a enorme grita das reses pelo alarido dos jornais".

Falo da violência que promovemos, mas será preciso evitar um mal-entendido: não é só violento aquele que mata ou estupra; afinal, há modos mais caseiros de assassinato e formas mais suaves de exterminio. Os antigos floricultores japonenes e chineses descobriram métodos de produzir amendoeiras, paineiras, e outras árvores imensas e frondosas em pequeninos arbustos de 20 cm que se usa como enfeite para a alegria das visitas. O método oriental é sofisticado; vai aos poucos podando as raízes e os galhos e colocando a árvore em recipientes cada vez menores, até que conseguem a miniatura final. Muitos, entre nós, tornaram-se especialistas neste método e souberam transformar algumas mulheres em objetos de poucos centímetros de estatura moral e física. Sentem-se bem assim, afirmam, como bibelôs da altura de um liliput na nossa terra de homens-Gulliver. Todos estes crimes são seculares e não podem ser esquecidos nem perdoados. Nada do que se diga ou escreva será forte o suficiente nem tão importante a ponto de apagar do cérebro dos vivos a tradição de tantas gerações mortas no pesadelo antifeminista. Já na antigüidade clássica, o pensamento de Platão, que havia situado a mulher entre os homens e os animais, revelava, ameaçador, a tradição posterior. Para o célebre filósofo grego "os homens covardes que foram injustos durante sua vida seriam muito provavelmente transformados em mulheres quando reencarnassem". Já nesta época, encontraremos a origem da expressão "paterfamilias" que era equivalente a "dominus", da mesma forma como "familiaris" queria dizer o mesmo que "servus". A mulher grega - sem sonhos, só presságios - já está enclausurada no gineceu e em nada participa da vida política e cultural da pólis. Prevalece e regra formulada pelo próprio Sócrates: "aos homens a política, às mulheres a casa".

Na tradição filosófica mais significativa a exclusão das mulheres permaneceu como um tema recorrente, atingindo em cheio mesmo a obra de gigantes do pensamento como Kant e Hegel. Para Nietzche, que chegou a recomendar o chicote para aquele que desejasse ir ao encontro de uma mulher, ela significava tão-somente o brinquedo mais perigoso do homem. Este deveria ser educado para a guerra e, aquela, para a recreação do guerreiro. Opiniões deste tipo podem ser selecionadas infinitamente em reflexões tão díspares como aquelas que separam Proudhon de Shopenhauer; ou Rousseau de São Tomás de Aquino. Este último, por exemplo, afirmou: "A mulher é um ser acidental e falho. Seu destino é o de viver sob a tutela do homem. Sobre si mesma ela não tem autoridade alguma. Por natureza a mulher é inferior ao homem em força e dignidade e por natureza lhe está sujeita, pois no homem o que domina, por sua própria natureza, é a facilidade de discernir, a inteligência".

A lembrança de São Tomás nos é particularmente significativa, pois revela uma tradição teológica que jamais encontrou dificuldade em amparar-se em textos bíblicos. A começar pelo mito da criação, encontraremos no Gênesis o símbolo mais evidente do papel secundário atribuído à mulher. Eva não surge senão de uma costela de Adão, e é por conta de sua imprudência que se comete o "pecado original", aterrorizante invenção religiosa que nos pretende fazer a todos portadores de uma culpa incontornável. Mal magnífico, prazer funesto, a mulher foi por nós acusada de ter introduzido o pecado, a desgraça e a morte. Pondora grega ou Eva judaica ela cometeu a falta primeira ao abrir a urna que continha todos os males ou ao comer do fruto proibido. O homem procurou um responsável para o sofrimento e o malogro e encontrou a mulher. Como não temer um ser que nunca é tão perigosos como quando sorri? É o apóstolo São Paulo quem sacramenta a exclusão em Corintios, capítulo II, versículo 9: "não foi o homem, evidentemente, que foi criado para a mulher, mas a mulher para o homem". E, em outra passagem, com a exclusão ganhando força normativa: "que as mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, com efeito, o marido é o chefe de sua mulher, como Cristo é o chefe da Igreja. Ele o Salvador do corpo. Ora, a Igreja se submete a Cristo, as mulheres devem, portanto, e da mesma maneira, submeterem-se, em tudo, a seus maridos" (Efésios capítulo 5, versículo 22). Por tudo isto, pode-se situar a reação de Tertuliano que dirigindo-se às mulheres diz: "Tu deverias usar sempre o luto, estar coberta de andrajos e mergulhada na penitência a fim de compensar a culpa de ter trazido a perdição ao gênero humano; mulher, tu és a porta do diabo, foste tu que tocaste a árvore de Satã e que, em primeiro lugar, violaste a Lei Divina".

Invectivas como esta se encontram de forma abundante em toda uma literatura sacra que prepara as condições para um dos fenômenos mais terríveis da história da cristandade: o período de caça às bruxas. O aspecto da mulher é belo, reconhecia-se, mas sua companhia podia ser mortal. Sua sexualidade, em torno da qual já se havia cavado um fosso, passava a ser doravante associada a atributos infernais. O ciclo para a diabolização da mulher estava fechado. Desde sempre imperfeita e perigosa, a mulher possuía menos fé, por natureza. Aliás, assinala-se, deriva desta convicção o vocábulo "feminina" que vem de "Fé" "mina" ; ou simplesmente," menos fé". Calcula-se que no espaço de três séculos - de 1450 a 1750 - pelo menos 60 mil mulheres foram queimadas como feiticeiras. Para variar, tais táticas tinham sustentação bíblica: em João, capítulo 15, versículo 6, pode-se ler: "Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora à semelhança do ramo e secará: e o apanham, lançam no fogo e queimam". E, igualmente, em Êxodo, 22-18, onde se assinalou: "A feiticeira, não deixarás viver".

Mas quem eram estas bruxas que mandamos queimar em praças européias para o riso e o temor das concorridas audiências? Mulheres comuns que não se adaptavam aos critériosmasculinos de piedade; parteiras e curandeiras que detinham um saber não-oficial; velhas de comportamento exótico, esposas infiéis, adolescentes consideradas estranhas, qualquer uma que, por qualquer motivo, ameaçasse a vigência de um padrão de conduta.

Ocorre, Sr. Presidente, que muitas outras bruxas se seguiram. A História está povoada delas. Bruxas como Olympe de Gouges que, em plena Revolução Francesa, publicou, parao escárnio geral, a "Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã". Sua declaração partia do seguinte principio: "Se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, também lhe deve ser dado o direito de subir à tribuna". No que toca ao cadafalso, seu direito foi respeitado. Olympe de Gouges morreu guilhotinada em novembro de 1793. E houve as bruxas inglesas como Flora Tristan que, testemunha do desenvolvimento industrial do Século XVIII, ergueu a sua voz para denunciar o regime de servidão ao qual estava submetida a classe operária e, particularmente, as mulheres operárias. Dela, o poeta poderia dizer que seu coração pairava sobre as fábricas qual gigantesca maçã. Flora morreu esgotada aos 41 anos de idade dizendo: "O que significa amar? Amar é escolher. Para amar é preciso ser livre". Já na outra vertente do Século, outra bruxa, Louise Michel lhe responde afirmando: "Escravo é o proletário e escravomais que todos é a mulher do proletário". Deportada para a Nova Caledônia depois da Comuna de Paris, e enfrentando a ira dos dominadores, Louise Michel nos lega a sua maior esperança dizendo:" Tomem nossos destinos esfacelados e façam deles uma aurora". Ninguém, talvez, em nosso século, assumiu tão radicalmente a tarefa quanto Rosa Luxemburgo. Bruxa revolucionária, Rosa almejou a aurora de uma sociedade socialista e libertária enfrentando, à sua direita, a política reformista da social-democracia e, à sua esquerda, as tendências burocráticas e totalitárias que a História veria se realizar tragicamente. Ao exemplo de tantas outras feiticeiras, Rosa teve seu destino esfacelado por mãos assassinas e masculinas, como tiveram na América Latina e no Brasil tantas outras bruxas como Olga Benário Prestes, entregue à Gestapo pelo Senhor Getúlio Vargas; ou como as centenas de companheiras que conheceram a fúria e a humilhação da tortura nos porões imundos da ditadura militar.

Sr. Presidente, acredito que as feministas sejam, por excelência, as bruxas da modernidade. É verdade que já não lhes preparamos fogueiras, mas é igualmente certo que nossa sociedade encontra-se verdadeiramente ardendo em preconceitos. Quantos de nós, homens e mulheres, imaginam-se "modernos" para, ato contínuo, sustentar o tabu medieval da virgindade? Quantos, efetivamente, definem-se como "democratas" para, no mesmo instante, negar ao outro os valores da moral sexual que exercitam?

Estas e muitas outras questões foram trazidas à discussão por um "incomodativo" discurso: o discurso feminista cuja força maior reside no fato de que é impossível se inquietar com ele sem que nos inquietemos conosco mesmos. E inquieto deve estar o Poder Legislativo do Rio Grande do Sul, quando se descobre quase inteiramente masculino. A presença nesta Casa, da garra e da coragem da Deputada Jussara Cony, bem como a determinação da Deputada Regina Rossignollo reflete, em sua proporção dramática, os obstáculos colocados a todas as mulheres para que se movimentem na esfera pública. O fenômeno não é estadual, mas assinala-se, reveste-se em nosso Estado de uma particular agudeza. Por certo, nossa herança cultural tem algo a nos dizer sobre esta exclusão, tanto quanto um determinado gauchismo que por aqui se cultua e que imaginou poder reservar às mulheres o papel de "prendas".

Por tudo o que já foi dito, que este 8 de março revigore a mais radical das feitiçarias: aquela que se verifica quando os amantes se enredam nos mais generosos sentimentos; e que as bruxas deste tempo e dos tempos que virão, possam prosseguir com seus mistérios, possam aperfeiçoar suas fórmulas e poções para que, um dia, todos sejamos permanentemente "encantados".

Muito obrigado.

Marcos Rolim fez esse dircuso na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Exercia o mandato de deputado estadual pelo PT naquela ocasião.

08-03-1991

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