domingo, 30 de agosto de 2009

Anistia inconclusa

Hoje, há 30 anos: a Anistia inconclusa

O belo edifício que abriga o Arquivo Nacional, no Campo de Santana, no Rio, recebeu um expressivo grupo de pessoas, vindas de diferentes regiões do país, no último dia 22 de agosto, para marcar a data da aprovação da Lei 6.683/79. A lei que concedeu Anistia aos perseguidos políticos e produziu uma excrescência jurídica: os denominados “crimes conexos”. Essa pérola de criatividade terá brotado da cabeça de algum rábula que se movimentava nas dobras do arbítrio e foi oferecida ao último ditador, para assegurar a impunidade aos torturadores que serviram durante anos ao Regime. Desde então essa sombra se projeta sobre a memória do país.

Trinta anos depois, ouvimos no pátio interno do Arquivo Nacional a palavra da sociedade, dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos e, pela boca do Ministro da Justiça, Tarso Genro, a palavra do Estado brasileiro. A alguns dos argumentos levantados, com brilho, pelo Ministro da Justiça, quero agregar outros.

“Terá havido um pacto para que se aprovasse a Lei de Anistia?” Os pactos supõem igualdade de condições. Em 1979, a sociedade brasileira ensaiava os primeiros passos para recobrar sua força e sua relevância depois de dez anos de terror. O único pacto possível era entre a corda e o pescoço... Não houve pacto. Houve a imposição do édito de um regime que antevia sua derrota e tratava de chegar a tempo de salvar a pele dos seus verdugos. Esse argumento é uma fraude.

“Não podemos reabrir feridas”, dizem os que defendem a impunidade. Cabem duas perguntas: “Quem foi ferido”? E “Essas feridas foram fechadas”? Quem prestará contas pela tortura dos opositores políticos, convertida em método rotineiro de interrogatórios? Pelos assassinatos, pelos desaparecimentos, pelas tentativas de fuga, pelos atropelamentos, pelos suicídios? Em uma frase, os defensores da tese de apagar a memória, nos convidam alegremente: vamos esquecer toda a brutalidade que nós cometemos contra vocês... e nós os perdoaremos por isso.”

“São revanchistas aqueles que desejam rever a lei da Anistia, abrir todos os arquivos”. Nós, que defendemos a abertura de todos os arquivos e julgamento dos torturadores, não defendemos que eles sejam torturados. Somos contra a tortura. Reivindicamos com a sociedade brasileira que eles sejam processados e julgados. Como foram processados, julgados e condenados, os que se levantaram contra o regime. Não somos, portanto, revanchistas.

“A Anistia foi recíproca”. Aqui recorro ao argumento da advogada Eny Raimundo Moreira, defensora de presos políticos e ex-presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia, do Rio de Janeiro: só quem foi processado e condenado por algum delito pode ser anistiado. Nenhum torturador, nenhum delegado de polícia acusado pelo crime de tortura de presos políticos foi levado a qualquer tribunal por essa razão, no Brasil. Infelizmente.

Por fim, não é demais lembrar, a propósito dos trinta anos da publicação da Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979, a afirmação do Dr. Marco Antônio Rodrigues Barbosa: “A tortura é um crime hediondo, não é ato político nem contingência histórica e afeta toda a humanidade, na medida em que a condição humana é violentada na pessoa submetida a esse crime. Quando alguém é torturado, somos todos atingidos duplamente: em nossa humanidade e em nossa cidadania. A prática da tortura é inaceitável e seus executores deverão ser punidos a qualquer tempo.”

A democracia brasileira deve a si mesma esse exercício de compreender e incorporar os anos da Ditadura Militar, com as perseguições, a brutalidade, a delação, o medo, a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos de perseguidos políticos, o exílio, o rosário de horrores perpetrados pelo estado ditatorial à exata dimensão histórica que lhe cabe: uma realidade incontestável que deitará sua sombra sobre a face futura do Brasil, até que seja resgatada.
Pedro Tierra é poeta. Autor do livro Poemas do Povo da Noite, escrito na prisão e reeditado pela Editora da Fundação Perseu Abramo e Editora Publ!sher Brasil, por ocasião dos 30 anos da Anistia.

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